segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O SINAL DA CRUZ

Quando chegou, pernas e braços perebentos, alguns riram, mas houve os que o olharam com compaixão. Nos baldios humanos em que nos cumpria existir, era normal que ríssemos diante das desgraças alheias: era uma forma de exorcizar o nosso próprio sofrimento. O menino era cheio de outras marcas, todas estranhas. Trazia, no peito, dependurada em uma corrente de cobre, a cruz de pedra, talhada por suas próprias mãos, segundo nos disse. Nas nervuras minerais mostrava-nos alguns sinais, de longe sugerindo números e letras, nas quais lia pequenos apocalipses. Andava sempre em zig-zag, olhava sempre para o céu e para o chão, cuspia sobre os próprios pés descalços, como os de todos nós.

Deixamos de rir quando nos chegou, por ele anunciada, a primeira desgraça. “Vejo sangue no meio do pátio, um caixão e muito choro” – falou-nos, depois de haver, em um canto, e sozinho, rezado a ave-maria das 6 horas da tarde. “Eu não quero saber de conversa com malucos” – advertiu Enéias, persignando-se. O menino olhou-o com tristeza: “Brinca muito Enéias, e conversa hoje com todos os seus amigos.”

No dia seguinte, antes do almoço, no meio do pátio, Enéias deixou, correndo, a formação dos que vinham da roça, para buscar uma carta na Secretaria. Levava a enxada, para deixá-la, antes, na sala-de-ferramentas: tropeçou e caiu, o peito magro sobre a lâmina. Nós o sepultamos, no dia seguinte. Todos choramos, também de medo. O menino, com suas perebas e sua cruz, parecia ser o senhor de nossa vida e de nossa morte.

“Se vocês quiserem viver, devem rezar muito, e deixar o pecado” – pregava, e o ouvíamos em silêncio. Que pecados deixar? Fora os primeiros, solitários, que outros haveria? É verdade que colhíamos, como se as roubássemos, as frutas do pomar e alguns legumes da horta, mas sabíamos que aquilo nos pertencia, porque éramos nós que plantávamos e cuidávamos, mas os funcionários é que desfrutavam de nosso trabalho, além de comer da carne e dos mantimentos que o governo mandava para nós. Assim, não havia culpa, não havia pecado. Não tínhamos nem mesmo inveja, porque, entre nós, não havia a quem invejar.

“Desprezar os mandamentos de Deus é o caminho do inferno” – pregava, enigmático, enquanto passava pelos grupos, reunidos nos cantos das paredes pelo frio da serra.

Não lhe dirigíamos a palavra: só respondíamos ao que perguntava, e o que perguntava era pouco: “Vocês viram o fulano? O fulano está muito chateado. Recebeu uma cara de casa dizendo que a mãe está doente. Conversem com ele.” Não conversávamos.

Quando Geraldo fugiu e foi apanhado, o menino nos avisou no dormitório. Soprou para o seu companheiro de lado: “Passa pra frente: pegaram o Geraldo na estrada, ele vai chegar amanhã cedo com um soldado.”

Era verão alto, e às 6 da manhã, antes que soasse o apito para a formação dos que iam para o serviço no campo, o menino, sozinho, colocou-se sob a grande paineira e começou a rezar o credo em voz muito alta. O chefe de disciplina ordenou-lhe que fizesse silêncio. “Só obedeço a Deus Nosso Senhor, e rezo por Geraldo que vai sofrer por todos os pecadores” – respondeu, altivo. O chefe de disciplina apitou para a formatura, e o menino não se moveu, continuando a rezar. “Deixa ele acabar de rezar”, aconselhou Martins, um funcionário experiente. “Ele é manso, só tem mania de rezar.”

Antes que terminasse sua oração, chegou Geraldo. O chefe de disciplina recebeu-o com o bofetão nos ouvidos. O menino, debaixo da paineira, gritou-nos: “Vamos rezar juntos, vamos rezar juntos” – e puxou o padre-nosso. Todos o acompanhamos, em voz muito alta. “Cala, cambada de vagabundos” – gritou, histérico, o chefe de disciplina. “Cala todo mundo, ou vou moer no pau este cachorro aqui.”

--“Vamos rezar, gente” – impelia-nos o menino - “o pão nosso, de cada dia, nos daí hoje”.

Gritávamos a oração, e, alucinado, o chefe de disciplina chutava Geraldo, que começou a pôr sangue pelas narinas. “Ele sofre por nós” – explicava o menino, ainda de joelhos, e passava à “salve-rainha”.

Alguém chamou o diretor, que veio correndo, e subjugou o auxiliar pelos ombros. “Você está louco? Estão todos loucos?”

No chão, a camisa de zuarte empapada em sangue, Geraldo não se movia. “Você matou o menino! Vamos, você matou o menino?”

Levantou-se então o “rezador”, como o chamávamos, e disse ao diretor que se acalmasse. “Ele não morreu, está sofrendo por nós.”

Duas semanas depois, levaram o menino para um manicômio. “Ele estava pondo os meninos todos loucos” – ouvi o diretor explicar a um tio que fora vê-lo. “Lá, naturalmente, vai sarar.”

Sabíamos que não. Um dia antes, no dormitório, ele passou-nos a mensagem: “Amanhã começa meu martírio. Rezem por mim.” Durante uns dias, rezamos. Depois, o esquecemos.

terça-feira, 26 de julho de 2011

JUDAS SEM TESTAMENTO

(Documento atualíssimo, que narra estranho fato ocorrido no Ano da Graça de 1844, transcrito com a ortografia atualizada).

Relato que fez ao reverendíssimo senhor bispo de Mariana o padre José Manuel da Ribeira, vigário da Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Paraopeba, na segunda-feira depois da Aleluia do ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e quarenta e quatro.
“Louvado seja Nosso Senhor:
“Levo ao conhecimento de Vossa Eminência Reverendíssima estranhíssimo fato ocorrido em nossa freguesia, nesta última Semana Santa. Para narrar a Vossa Eminência o acontecido, sou obrigado a voltar há mais de um ano, quase dois. Aqui na cidade e município de Nosso Senhor do Bonfim do Paraopeba houve, como sabe Vossa Eminência, combates e lutas políticas por ocasião da Revolução encabeçada por José Feliciano Pinto Coelho e Teófilo Benedito Ottoni. Quando foram vencidos os liberais, e aqui entraram as forças legalistas, houve como pode imaginar Vossa Eminência, muitas prisões.

“Não quero dizer a Vossa Eminência da justiça ou injustiça delas, posto que, homem de fé, sempre me comportei em obediência ao santo papa, aos príncipes da Igreja e à sua majestade imperial, nosso senhor dom Pedro II. Quando as forças legais entraram na cidade, elas foram guiadas por um tal Eusébio Fonseca Sorono, negociante de tropas, capangueiro de dentes de ouro, homem de miúdo comércio. Constava então que ele levou os oficiais do senhor general Caxias aos principais cabeças da Revolução aqui, em troca do emprego de recebedor das rendas aqui no município e comarca, posto que ele ocupou até as festas da Paixão de Nosso Senhor. Durante muitos meses, Eminência, ele passeou sua soberba e sua força por nossa comarca. A mim mesmo me ofendeu certa vez em que estive aqui, em Piedade, para visita aos pais dele (que são gente da melhor honradez), mas nem quero referir o ato a Vossa Eminência.

Apanharam com cipó-de-boi e fizeram penitência, ajoelhados em contas de lágrimas de Nossa Senhora.



“Durante muitos meses mandou e desmandou. Os que ele denunciou, foram para a cadeia, beberam urina de cachorro e comeram angu de farelo e óleo de rícino; apanharam com cipó-de-boi e fizeram penitência, ajoelhados em contas de lágrimas de Nossa Senhora. Muitos perderam suas fazendas.
“Mas, como sabe Vossa Eminência, anunciou-se que S.M.I., em sua generosa e santa sabedoria, decidiu anistiar os rebeldes de Sorocaba, do Serro, de Santa Luzia do Rio das Velhas, de Queluz e do Bonfim. Então, desde que a noticia chegou aqui, no Bonfim, Eusébio Fonseca Sorono sumiu. Sumiu, mas não sumiu para longe. Veio para esta freguesia, viajando pela Serra do Rola-Moça, e se escondeu em um retiro da fazenda do pai, homem bom, como já fiz menção a Vossa Eminência.
“Na quinta-feira de trevas, quando eu pregava aqui de nossa capela, em que vim oficiar na Semana Santa, eu o vi, de longe, em uma besta pampa, na estrada que vai para os Borges. Na sexta-feira, eu soube depois, ele ficou meio escondido nos matos, olhando o cruzeiro, enquanto nós fazíamos a via-sacra. Por isso, o Neca, que Vossa Eminência conhece, de quando aqui esteve para a crisma, e os amigos dele estranharam quando ele apareceu, ajudou a fazer o Judas, e se prontificou para ficar tomando conta do arraial que eles montaram para a queima do traidor de Nosso Senhor.
Tirou o boneco da forca, cortou a máscara de pano (...) botou as luvas do miserável inimigo de Deus      e se enforcou no lugar dele

“Quando o pessoal, com sono, foi para suas casas, imagine Vossa Eminência o que ele fez! Tirou o boneco da forca, cortou a máscara de pano, com os olhos, o nariz e a boca bordados por Sinhá Filó, enfiou na cabeça e na cara, botou as luvas do miserável inimigo de Deus e se enforcou no lugar dele.

“O demônio o ajudou, Deus que me perdoe, Eminência, porque ninguém deu pela coisa, até a tarde de sábado, quando o povo se reuniu para queimar o boneco. Neco sentiu a falta dele, Sorono, mas todo mundo sabia que ele andava esquisito ultimamente, depois que falaram em anistia, por isso não comentaram sua ausência. Quando jogaram azeite de mamona no Judas, e puseram fogo, e os panos incendiaram, houve o forte cheiro de carne queimada. Depressa, depressa, os pedaços de pano com fogo foram caindo, e apareceu o corpo de Eusébio Sorono dependurado no poste da forca. Houve um silêncio terrível, Eminência, as mulheres começaram a gritar, e eu, que estava a rezar meu breviário, saí correndo e cheguei a tempo de ver a corda arrebentar com o fogo e o corpo cair, estatelado no chão.
“Não deixei enterrar em terra sagrada. Falei com o pai dele que ia consultar a Vossa Eminência. Mandei que enterrassem provisoriamente, num terreno da fazenda da família.

domingo, 24 de julho de 2011

A CATEDRAL

Tantos que foram os anos, talvez a  memória me engane. Certas coisas – e que seriam importantes em qualquer relato – me ocorrem como sombras sem contornos. Não sei exatamente em que lugar se encontrava a mais humilde de todas as capelas que conheci, de pau a pique, coberta de palha de buriti (ou de sapê, como posso precisar?), o altar montado em jirau de taquara, com as toscas imagens, que não se pareciam a nenhum santo conhecido, mas todas coroadas com seu halo feito de cipó amarelo, bem fininho e trançado com muito zelo. Os santos eram esculpidos em barro cru, mas – ao que me pareceu – cobertos de clara de ovo, para que não quebrassem.
             Sobre o altar, pregada na parede também de barro, em folha dupla de papel almaço, a saudação do anjo ao nascimento de Cristo: Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. O chão, de terra batida, ainda mostrava os rastros da vassoura, de ramos de alecrim-do-campo, encostada a um canto. Era o sinal de que alguém cuidava bem da capelinha. Não havia como sentar-me: era uma capela feita para a genuflexão. Dobrei os joelhos e rezei àqueles santos e santas desconhecidos: era um homem, uma mulher e seu filho. Pensei na Santíssima Trindade, mas talvez não fosse. Podiam ser um santo qualquer, que não José, o Carpinteiro, uma santa qualquer, e não a Virgem Maria. E o menino, disso estou certo, não tinha nada a ver com Jesus. Era um menino já parrudinho, não o da gruta. Tinha os olhos esbugalhados, talvez de espanto, desproporcionais ao rosto. Assim mesmo, orei. Disso andava precisado, como sempre andei.
            Rezei o padre-nosso e a ave-maria, que sabia de cor, e tentei rezar a Salve Rainha, mas, como até hoje, tropecei aqui e ali. Quando chegava ao “vale de lágrimas”, me perdia, ao imaginar um imenso vale, cheio de lágrimas. Não há lágrimas que encham um vale. Poderia ser um vale de contas, das que se fazem os rosários, e que se chamam lágrimas de Nossa Senhora. Mas, não: o autor da prece deve ter pensado nas lágrimas de Nossa Senhora diante do filho morto.
             Entardecia, e já viajara um bom tempo, não me lembro se contra o sol ou se minha sombra ia adiante, e não vira viva alma desde que me despedira do último pouso, em fazendinha qualquer. Minha memória anda vasqueira. Não vira viva alma pelo caminho e já era hora de suprir-me de novo da paçoca do embornal.
           Na frente da capelinha, vinda do morro pedregoso, descia uma agüinha e a bica, de meia taquara, talvez servisse – pensei - para algum batizado, se algum cristãozinho precisasse disso, na hora da morte e tão longe dos padres.
            Bebi da água, que era suave, leve, muito fria, naquela tarde mormaça, dessas que prometem chuva noturna, para empurrar a paçoca, já meio encaroçada, goela abaixo. E pensei comigo que era mais no jeito dormir por ali mesmo, na capela. Na encostinha do lado, disso me lembro bem, crescia, estrangeiro naquele pedaço de mato nativo, uma braça de capim-gordura. Com meu canivetinho corneta, cortei umas duas braçadas do capim e ajeitei uma cama dentro do rancho-capela, mas, por respeito, bem longe do jirau do altar.
            Custei a dormir e acho, já que a memória me confunde, que sonhei com os santos de barro. Nessa lembrança confusa, eles se identificaram como gente dali mesmo, de um arraial qualquer, que haviam sido modelados pelo beato para ornar a igrejinha vagabunda. No sonho, o beato também aparecia, para dizer que se  somos iguais a Cristo, na pobreza e no sofrimento, todos somos também santos - e bem merecemos um altar. Que Deus me perdoe a blasfêmia.
            Acordei com o sol, que vinha das frestas da cafuazinha, coçando as pestanas. Dei mais uma ajoelhada, agradeci o pouso, esperei do lado de fora para ver se o beato, ou quem quer que fosse, aparecesse. Como a paçoca acabara, achei melhor desistir e buscar rumo, depois de encher a cabaça com a agüinha da bica. Até hoje, com a discrição que convém a um agnóstico, continuo devoto daqueles santos de barro pobre, naquela capelinha de nada que foi a minha catedral.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

O CANTOR DAS ÁGUAS

A canção, morna, vinha do rio, com sua aragem. Só se distinguiam, dentro dos acordes que embriagavam, umas poucas palavras: vem, espero, braços, alma. Sentiam-se, com as notas, odores que, como os sons, atraíam as mulheres – e mais ainda nas madrugadas quentes. Mas não havia hora para o encantamento: Dozinha, casada de pouco, caminhou apressada para o rio em pleno meio-dia,  enquanto seu marido, com saudades da noite, voltava correndo da roça, levando nas mãos uma orquídea branca. Entrevada em seu catre, a sogra ouviu a mesma toada e sentiu o mesmo cheiro, mesclado de baunilha e almíscar. “Fiquei meio doida, e falei com Dozinha que fosse, que eu também ia, se pudesse” – confessou depois ao filho.
           Era o barqueiro. Em tempos bem passados, quando o Rio das Velhas navegava, um rapaz de Santa Luzia se apaixonou pela irmã. A moça, seduzida pelos seus olhos, castanhos e desmaiados, a ele se entregou. Arrependida de pecar contra Deus, afogou-se nas águas cheias de março.
          Depois disso, continuava a lenda, ele arrumou seu barco e saiu, procurando a irmã no leito do rio, de seus afluentes e do São Francisco, que leva aquelas águas ao mar. Ninguém o via. As mulheres que encantava nunca se lembravam de seu rosto. Recordavam o calor cheiroso e o gosto inenarrável de seus lábios.
          Delzira, uma delas, voltara da praia guardando na boca a saliva do moço do rio. Ao chegar à casa, enlouquecida de prazer, cuspiu grãos de ouro na baciinha de lavar o rosto. Cresceu, a partir de então, a sedução do encantamento e, mesmo sem ouvir-lhe o chamar, mulheres saíam  de casa, sonâmbulas e silenciosas,  nas noites de lua, e se despiam, na inútil espera das praias vazias. Voltavam tristes ao amanhecer, e amavam seus maridos com a fúria do cio.
             Passavam-se anos sem que houvesse notícias do moço do rio. “Ele só aparece de sete em sete anos”, explicava um espiritista de Jequitibá. “É o tempo que ele tem para chegar ao mar e voltar”. Segundo sua teoria, alimentada de leituras gregas, o moço fora condenado a resgatar das águas o corpo imperecível da irmã. “Se ele  encontrar o corpo, ela ressurgirá dos mortos, e cumprirá o seu destino, que ele roubou. E será a vez de ele morrer. Para ter fôlego de ir sempre ao fundo,  deve buscar o alento nas mulheres da beira do rio”.
          Juntinho da barra do Rio Cipó viveu, de 1918 a 1949, dona Marcela, a italiana. Passou trinta e um anos à espera de seu retorno, mas o moço nunca abraçou duas vezes a mesma mulher. Dona Marcela chegara àqueles belos ermos do Espinhaço acompanhando o marido geólogo, que buscava sinais de diamantes. Era, então, muito jovem, recém-chegada de Rovereto, ao sul de Trento e ao norte de Verona. Como fazia nos verões de seu rio natal,  banhou-se nas águas límpidas do Cipó. Braços lúdicos a carregaram para as águas mais densas do êxtase. Depois disso, não saiu mais dali. O marido, amoroso e resignado com o que lhe parecia loucura, construiu-lhe um rancho junto à confluência das águas, comprou terras próximas, lavrou-as, disso viveu. Cuidou da mulher,  até que ela morresse. A italiana se banhava, no mesmo lugar, todas as noites e, com sua voz de contralto, que os anos enrouqueceram, tentava reproduzir os acordes ouvidos naquela remota lua cheia de 1918.
          Em novembro de 1949, pescadores de Curvelo encontraram seu corpo desnudo, na praia estreita. Deitada de bruços, sobre leve elevação da areia, tinha entre as mãos uma touceira de capim, limpa pelas águas, e os dedos mortos pareciam acariciá-la, como se fossem cabelos. O marido sepultou-a por ali mesmo – e voltou para o seu país.
         A última notícia confiável do moço do rio data de 1955, o que contraria a cabalística volta setenal.  Naquele ano, um jornal de Belo Horizonte chegou a publicar sucinto caso de uma jovem que se dizia seduzida e violada por misterioso mergulhador. O fato ocorrera em Baldim, e o desconhecido cantava uma modinha muito antiga. Sua versão foi jocosamente comentada e, por algum tempo, os gaiatos perguntavam às moças do lugar: “como é, você já foi à beira do rio?”
         Um repórter foi então despachado para investigar o caso, nas margens do Rio das Velhas e seus afluentes médios, onde ocorriam tais visagens. Mas a matéria foi recusada. Ninguém quis acreditar. 

segunda-feira, 18 de julho de 2011

OS OLHOS DA ONÇA

O último a morrer foi Nicácio. Alto, seco, de gogó ossudo, povoado de pêlos brancos, resultou em cadáver de bom termo. Não era morto que parecesse vivo, mas tampouco assustasse. Um defunto decente, convenhamos. Os que o sepultaram, em tarde quente, voltaram para casa com dois sentimentos. Com o velho teimoso acabava o ódio dos Antunes, que durara pelo menos 50 anos, mas ficava em seu lugar o vazio. Não poderiam divertir-se mais com o ritual de todas as madrugadas, quando, cumprindo sua promessa insolente, Nicácio escolhia a campa de um de seus irmãos para nela verter as primeiras águas do dia.
           Em seu passo lento, ao se encontrar com os raros transeuntes da alvorada, informava, a voz alegre, canalha:
           - Acabei de aguar os ossos do Anacleto. Amanhã vai ser o Teodomiro. Sábado é o dia da Odélia.
           Toda a cidade sabia da imprecação matinal. Nicácio conversava com seus mortos, dava notícias de seus bens: “Teodomiro, estou criando uns porquinhos na sua casa. Afinal, aquilo ali sempre serviu mesmo para cevar capado. Agora, toma lá” - e, enquanto molhava o túmulo, repetia todos os sujos palavrões antigos. 
           O que seria, depois de ido Nicácio, daquelas quatro casas, cada uma delas em seu ângulo do quarteirão, separadas por altos muros, com as ruínas da primeira moradia no centro? Ele esperara morrer o último dos irmãos para profanar-lhes os túmulos. Coube-lhe, por sorte, a doce recompensa da sordidez – mas não seria diferente com qualquer um dos outros. Detestavam-se com a mesma força. À ira, silenciosa, velhaca, dedicaram a vida inteira. Renunciaram ao amor, desprezaram o luxo, desdenharam a gula e foram castos. Antes de dividida a fortuna – e não estava nisso a raiz da discórdia – foram vistos juntos, pela última vez, no sepultamento da mãe. Era miúda e seca, e poderiam ter segurado as alças do ataúde com o dedo mínimo, tão leve estava. No portão do cemitério aceitaram as condolências e se dispersaram. Foi nesse momento, segundo a tradição oral, que se prometeram, insolentemente, a raiva eterna.
         Enquanto viva, Maria do Perpétuo Socorro mantivera unida a família sob uma autoridade feroz que contrastava com sua fragilidade física. Tinha, porém, os olhos acesos de onça parida, e lábios finos que nunca sorriam. Nunca afagou os filhos: pequenos, deixava-os aos cuidados das criadas; maiores, ficaram por conta do professor contratado, a quem dera instruções de severidade e uma palmatória. “O senhor vai fazer homens desses meninos. Não tenho marido e, se ainda o tivesse, de pouco me valeria. Não quero fracotes como foi o pai, aqui em casa. E não poupe a menina: não cresça assanhada, nem melindrosa”. Corriam lendas de que despachara o marido com mistura de ervas fortes, preparada por um raizeiro do Morro Preto. O certo é que ele, mau poeta e bom mulhereiro, arriara a trouxa na casa de Mariana das Trancinhas, depois de um recital de versos alexandrinos e bom desempenho específico.
          Por que se detestavam, mesmo, ninguém sabia. Orosimbo punha a culpa na mãe (“aquilo era  uma bruxa de areia nos seios, seca feito coivara do ano passado”) e padre Bento responsabilizava o demônio. Daquela família jamais saíra uma prenda para as festas do padroeiro.
          Construíram as casas, depois de repartido o terreno em áreas iguais, respeitada e excluída a residência antiga, que ruiu sozinha. Os outros bens – terras, gado, ações – fizeram um fundo de que três gerações de advogados cuidaram com zelo e de cujos resultados se valiam, com parcimônia, todos os herdeiros.
          Aberto o testamento de Nicácio, o último legatário, houve a surpresa: mandava transformar o terreno em jardim público e distribuir os bens sobrantes, convertidos em dinheiro, a todas as famílias do lugar. Ao padre Bento, que o confessou nas últimas, Nicácio pediu desculpas ao povo pelo desrespeito ao cemitério, mas não se arrependeu da raiva: 
         - Se Deus não perdoa, não faz mal, padre. Valeu a pena.   

sábado, 2 de julho de 2011

A VONTADE DAS ARMAS

Há armas que têm sua própria vontade. Em algumas é o espírito do armeiro que as habita e domina. Nenhuma garrucha feita por Cesário Lopes, que morreu na véspera da República, era capaz de matar mulher, era o que se dizia. A arma desviava a mão do atirador e o coice - há pelo menos um caso registrado - aleijava a munheca. Em outras, é a alma do primeiro dono que manda. Durante décadas, o Colt 38, de coronha de madrepérola, do major Eurípedes, da Força Pública, foi arma cachorra. Só servia para matar gente fraca. De tiro certeiro em geral, aquele revólver do major (ele mesmo fracote, de pescoço comprido e boca murcha)fugia à fama. Quando o opositor era homem bravo, o revolver tremia e escarrava; só era valente com os pobres coitados. Foi assim que Ramiro, pistoleiro de preceito, com um revolvinho 22 – arma de matar morcego – mandou o major para o inferno, na vista de todo mundo, em dia de feira em Almenara. Dizem que ele fez de propósito, usando uma arma tão roscofe, para humilhar o morto, deixando no coldre o parabelum de que habitualmente se servia. O Colt do major foi caindo de valor, até que um tal Vicentinho teve a idéia de o benzer, trocar a coronha vistosa por outra, talhada em pau de goiabeira vermelha, desniquelar e galvanizar o aço da arma. Assim o Colt desencantou, e depois de revendido e trocado, anos depois, estourou a cabeça de um valentão papudo, em arruaça de bordel, lá pelos lados do Goiás.
Algumas armas são amansadas, como esse punhal sergipano que eu tenho, e que arranquei da mão de uma vagabunda que usara o ferro para matar o marido, em Itabaiana. Quebrei a ponta aguda, e, com a lima, arredondei o lugar, fiz a faquinha de jeito. Com ela descasco hoje laranjas, e foi descascando uma lima da pérsia que me lembrei destas histórias.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A BANDEIRA DE PESSANHA

Os que quiserem, desacreditem. Prevenido, como sou, contra as ilusões da certeza, acho que aceitarei o convite de Hermínio, e irei ao Riachinho no dia 20 de outubro, data em que, segundo seus cálculos, voltará a passar, pelo Val do Jumento, a bandeira perdida de Diogo Pessanha Moniz.

São fugazes as referências documentais sobre bandeiras que não fundaram cidades, nem voltaram. Constituídos de aventureiros menores, muitas vezes sem o consentimento das autoridades, reduzidas em seus recursos, esses grupos partiam de São Paulo sem festas de despedidas e sem cartas d’El Rei; recorriam sendas normalmente inviáveis, ladeando rios difíceis e os cruzando, com perdas humanas, quando se sentiam impelidos a isso, na preação de índios e outros quefazeres. Delas, talvez a de menos propósito tenha sido a de Diogo Pessanha. Uma carta, trazida dos arquivos do Conde de Tuy, revela a frivolidade da empresa. Quem a assina é uma cunhada do chefe da expedição, mulher de Antonio Ramalho Pessanha. Pela mensagem se sabe que Diogo juntara o que havia de pior entre as pessoas sem qualidade da vila, e se embrenhara pelos sertões do Norte, nas semanas da quaresma de 1684. Galhofeiro e blasfemo, levava, como estandarte, uma camisola vermelha, que dizia ter pertencido a um dos primeiros jesuítas do Planalto, e sobre quem pairavam suspeitas de passiva sodomia. Acompanhava-o um séquito sórdido. Como lugar-tenente, levava o judeu renegado Mertins, que se atribuía os poderes da Cabala, e de quem se dizia, à boca pequena, ter enforcado a mãe, na vila de Óbidos, antes de vir para as terras brasileiras. Há também referência a um corcunda de mãos quentes, capaz de cozinhar uma perdiz em poucos minutos, desde que a mantivesse sob o agasalho de suas palmas e dedos. A expedição, de acordo com o diário, escrito por Mertins, e deixado no arraial do Tamanduá, atravessou a Mantiqueira no princípio de maio, depois de haver buscado trilhas de índios, que não de brancos, entre Taubaté e Sorocaba. Dela há sinais de passagem em todas as Minas, nos últimos trezentos e tantos anos, porque, marcada por singular e ainda desconhecida maldição, foi condenada a vagar, mesmo depois de mortos seus integrantes, pelos sertões pejados de ouro e de pedras preciosas, de índios e de piscosas lagoas.

Hermínio, latinista, homeopata, rosacruz e maçom dissidente do rito escocês, está levantando todos os dados, e pretende escrever alentada memória sobre o assunto. Em 1791 houve notícias da bandeira de Diogo Pessanha na estrada de Ouro Branco. Um padre e seu moleque, idos das Congonhas, encontraram-na em pleno dia, com alguns de seus homens esfolando um macaco. Blasfemos, como eram, haviam amarrado o animal a uma cruz, e lhe arrancavam a pele, com facas afiadíssimas, e cortavam bifinhos que se repartiam. O corcunda, ao lado, fritava-os na concha das mãos. O macaco, já sem forças, gemia e chorava. Com aquela visão, o sacerdote enlouqueceu, mas o moleque, que ainda guardava, da África de seus pais, certas suspeitas, narrou o fato ao vigário da Capela do Pilar. O pároco lhe impôs segredo, - mas deixou constância do ocorrido em papel solto entre as páginas do Livro de Batismos.

Hermínio rastreou a bandeira por estes três séculos, e dela teve sinais no Bonfim e nos dois lados do Rio das Mortes; nas Minas da Campanha, do Sabará, do Jequitinhonha, no Desemboque e em Paracatu. Na última cidade, e na sede de fazenda adquirida recentemente por um amigo do pesquisador, foi encontrada arca de couro com objetos pertencentes a um tal Pessanha. Segundo Hermínio, que os examinou, tal como os cometas, a bandeira perdida de Diogo Pessanha volta, de 30 em 30 anos, ao mesmo caminho. No dia 20 de outubro, que vai dar em uma quinta-feira, estaremos em Val do Jumento, à espera de Diogo. Se ele não passar, paciência. Não faltará a boa cachaça das redondezas.

terça-feira, 17 de maio de 2011

FRITADA DE ESCORPIÕES

Era tempo de guerra nas lavras e garimpos. Armadas de “Winchesters” calibre 44, iluminadas pela azulada luz de carburetos, turmas de jagunços irrompiam nos acampamentos, antes do nascimento do sol. Os lavristas dormiam em cima de suas pedras e armavam complicados sistemas de alarme: na madrugada tiniam as latas de querosene, os cães ladravam e ecoavam, nas brenhas, os tiros das carabinas.

Eu era o escriturário daqueles homens. Contabilizava, em cadernos escolares, as remessas de escórias de berilo e malacacheta que, levadas em mulos, desciam córregos e rios, até a Figueira, para serem preparadas e enviadas à guerra grande na Europa. De vez em quando, no mulo que ia logo depois da besta-madrinha, ao som do cincerro, viajava um morto.

Jorito era amestrador de tatus, bons animais de lavra, se bem ensinados: recolhia-os nos ninhos, de casca ainda mole, e lhes dava leite de cabra com água e açúcar. Quando já maiores, enganchava-lhes, no rabo, uma correntinha e, depois dela, corda-de-arame trançada. O tatu abria longos buracos – pela terra se descobriam os veios.

Remualdo comia aranhas e escorpiões, era o que constava. Fazia fritadas com os bichos, depois de lhes extirpar os ferrões, e passava, de barraca em barraca, com o prato de alumínio, oferecendo uma provadinha aos homens que bebiam cachaça e cuspiam grosso.

Quando voltavam de Figueira, os tropeiros traziam novas mulheres para as lavras. Quase todas em sépia: muito poucas em tricromia. Era difícil pronunciar-lhes os nomes: Esther Williams, Dorothy Lamour, Evelyn Keyes. Dois anos e meio de lavra, sem sair da serra, Toinzão foi a Peçanha e voltou olhando a ponta do pé:

- Não deu jeito. Tou mesmo acostumado é com a gringa da revista.

De todos o mais manso era Dorô, magro, olho vermelho, carapinha cinzenta. Vivia o tempo inteiro triste e rezava todas as tardes. Sem serventia para o trabalho duro, não tinha túnel de seu: fazia biscates para uns e outros e “benzia” contra friagem e descadeiro. Certo dia baixou na lavra um delegado especial de capturas, com 30 praças armados de zebê e hotiquins: levaram uns 15. Gente de crime provado vinda de longe: pistoleiros do Alagoas, do Espírito Santo, até Mato Grosso. Dorô era o mais perigoso, disse o major da Força Pública. No seu rol de mortos havia até um senhor bispo do Nordeste.


No ponto mais alto os mastros de bambu levantavam a antena do rádio-galena. Na hora do repórter-esso da noite eu colocava os fones no ouvido e repetia para todos o que se passava em Sebastopol, Odessa e Leningrado.

- Esse Stálin ainda vai passear de espora, montado no Hitler, em Berlim – afiançava Bené, outro que a gente desconfiava ser escondido da polícia.

Quando acharam o grande bamburrio, a lavra acabou em sangue. Quem podia imaginar a pedra solteira, rolada não se sabe de onde, logo ali, entre as raízes da paineira? A paineira, no meio do acampamento, fora deixada de propósito, para dar sombra. No descanso do almoço, em cima dos caixotes em volta da árvore, jogava-se ronda e vinte-e-um. Um raio derrubou a paineira, de madrugada. Na terra fofa, bem perto do toco, apareceu a água-marinha. Um homem só não dava para movê-la. Eu que fui dos primeiros a chegar perto, apanhei duas lasquinhas e as escondi, depressa no bolso. Vi logo o que ia dar, e peguei o trilho no caminho da Poaia. Do altinho vi começar a briga. A pedra aparecera longe de qualquer serviço, mas cada um de todos queria ser seu dono sozinho. Depois de um tiro, os homens se esconderam atrás de qualquer coisa e a guerra ficou feia.

Com minhas duas pedrinhas no bolso – água-marinha forte, daquelas que valiam 50 mil réis o quilate – desci a rota dos tropeiros, até a Concórdia do Mucuri. Na fazenda do coronel Lúcio do Poté me deram remédio para susto, depois que eu contei a história do bambúrrio. O farmacêutico me comprou as pedras, pus a escrita da fazenda em dia, me emprestaram um animal para ser entregue em Itambacuri, na beira da estrada que ia para o mundo.

Muitos anos depois encontrei, em Teófilo Otoni, Toinzão, com uma só orelha. Não quis me contar tudo o que aconteceu:

- Só sei que a briga começou no tiro e acabou na foice.

SOLO DE BANDOLIM

Eis-me, de novo, em São Bento da Barra Feliz. A ponte é a mesma, sobre o rio Santa Bárbara, mas a noite é clara, mercê da lua, de nudez inteira oferecida. Na outra viagem, as nuvens contidas pela serra desciam o vale, brumavam as casas.

As névoas, acomodadas, pareciam dormir nas ruas, ao lado de cabras, burros e cães.

Entre eles, caminhei, seguro de vencer aquela leguazinha do destino, um pouco tirana comigo. Em Nova Era,  perdera o amigo e a mala: os dois decidiram outra rota, deixando-me nas mãos apenas os dedos. Sempre acreditei que os bons caminhos são os caminhos encostados aos rios: as trilhas em campo seco podem interromper-se ou embaralhar-se. As águas prometem sempre o destino final da liberdade, a montanha ou o mar.

Subi, assim, o Piracicaba, com a solidariedade dos humildes, a única que assiste ao viajante, e cheguei a São Bento da Barra Feliz, noite ao meio.

Ouvi, não muito longe das águas, rumor de cordas. Era um bandolim solitário e discreto. Pensei, de pronto, que anunciasse baile – e me aproximei. Encostado ao muro velho, quase dele participando, como alto-relevo (era a ilusão das brumas) o homem tocava seu instrumento. Cochichou-me uma saudação, supondo-me seu compatriota. Aproximei-me:

             - Por que não toca mais alto? Assim a moça não acorda.

             - Não quero acordá-la. Toco para que seu sono seja suave.

O muro era alto, as névoas cobriam além, não vi luzes, não ouvi o sopro de cortinas que se abrissem.

               - Sim, ela dorme.

O homem parou de tocar, dando noticias de seu espanto:

                 - O senhor é do Morro Grande?

Era a primeira vez que alguém endereçava à minha adolescência tratamento de respeito.

                 - Não, de longe. Bem longe.

                - Então por isso é que não sabe. Ela não vai acordar, não. Está ouvindo o remanso?

Percebi, então, que o rio entrava até perto de nós, em enseada estreita.

                     - Ela dorme no remanso. Minha filha.

COISA DE HOMEM

Eu acredito na Providência Divina. Deus, em sua bondade infinita, reserva uma parte de sua misericórdia para atender a pequenos pilantras, como éramos, o Élcio Catarinense e eu mesmo, que me apresento como Eduardo, vulgo Quina de Nove, de sobrenome pessoal e secreto. Quem vive de expedientes, como vivíamos – e eu ainda vivo, já que “fecharam” o meu parceiro  -  não pode ter escolha, pega o que aparece. E o que tinha aparecido era o baralho de cartomante, aquele cheio de figuras esquisitas, espadas, coroas e caveiras. Com minha cara de menino, parecia impor  respeito. Élcio servia de agá: começou a espalhar na cidade que tinha um moleque na praça, com o baralho de sorte, adivinhando tudo. Primeiro foi uma senhora bem velhinha, que chegou, ressabiada. Olhei-a firme, quase podia contar as rugas. E, fechando os olhos, disse a Deus que estávamos os dois vagabundos, mas de bom coração,  um dia e meio passando a água sem pão, e merecedores de sua bondade. Tínhamos muito tempo pela frente, para mudar de vida, mas era preciso comer, porque senão o desespero podia nos aconselhar mal. Por que ele iria perder duas ovelhas famintas e desgarradas da boa sociedade? Desse uma mão, pelo amor dele mesmo.  Depois pedi à dona que embaralhasse e partisse as cartas, enquanto mantive os olhos fechados, firme com Nosso Senhor. Como não entendia nada, espalhei as cartas, de sete em sete, e disse, de cara, à velhinha, que o grande amor de sua vida acabara de bater com as dez. Ela ficou espantada, não quis ouvir mais nada, deixou a nota de cinco mil réis, meus honorários fixos e inegociáveis, sobre o caixote que servia de mesa e saiu quase correndo.
              O sujeito que veio em seguida, fazendeirão de cara gorda e bigode grosso, quis dizer o que o preocupava e eu cortei, logo: “Só leio as cartas se o senhor não falar nada. Quem vai falar sou eu”. E falei o que me veio à cabeça: “o negócio vai dar certo. Depois de amanhã, o senhor recebe a escritura”.  O fazendeiro perguntou como é que eu sabia que ele estava comprando a fazenda, e eu disse que eram as cartas. Inventei que o sete de espadas, daquelas espadas grandonas e verdes, significava negócio feito, e faturei vinte mangos.
                  E assim passou o dia. Quando chegou a tarde, contamos a féria: trezentos e cinco paus, no tempo de salário mínimo de 160 mil réis. Resolvemos dar o fora, e alugamos duas  bicicletas, para ir ao lugar das raparigas, do outro lado do rio. A idéia era a de, depois da devoção às meninas, pegar o noturno, que passava às dez e meia, e largar as bicicletas por lá – mas não deu. Quase todos os clientes  vieram atrás de nós: a velhinha veio dizer que seu antigo  namorado fechara o paletó, aos oitenta e dois, no Rio: telegrama da viúva, no caso sua prima, confirmara que ele morrera de madrugada. Do fazendeiro não tive notícias logo, mas sei que o negócio se fez. Ganhamos mais algum do farmacêutico, que se livrara do fiscal do imposto do consumo, e da mocinha que recebera a carta esperada. Acabamos dormindo acompanhados de mulatas aprendizes,  na zona da beira do rio, o que nos levou trinta mil réis, além da cerveja e do frango assado. De manhã cedinho, antes de pegar o ônibus para a capital, olhei para o céu e vi as duas nuvens que pareciam caras de longas barbas: uma parecia sorrir, com o sol atrás de uma abertura que fazia o lugar da boca, a outra era fechada, sizuda. Entendi o recado divino. Quando o Catarinense sugeriu que fôssemos dar o golpe do cartomante em cidade do meio do caminho, cortei, logo: “Deus não faz gracinha duas vezes pra vagabundo”.
            Na capital, joguei o baralho de adivinho no lixo e voltei ao carteado normal, entre malandros e otários que acham que são malandros. E no jogo sujo de cunca, em que sou especialista,  Deus e diabo não se metem. É coisa de homem.

A CASA DO LADO ESQUERDO



Nunca se soube qual delas teve a idéia, e não adianta investigar depois de tantos anos passados. Todas descansam no túmulo que compraram na cidade maior, como se tratasse de uma família qualquer. Também o túmulo está morto: ninguém o visita mais nos finados, como visitavam antes. Nada é mais definitivo do que a morte de uma época.
        Eu, que as conheci já no fim (todas se foram no espaço de seis meses), suponho que a proposta fora de Lina, Carolina, a mais instruída das três que abriram e fecharam a “Casa do Lado Esquerdo”, na saída do Boqueirão da Gameleira. Do lado esquerdo porque, do lado direito, morava Nhozinho, benzedor de cobras e de ratos que infestam, de ordinário, aquelas fazendas do pé de serra.  
            Vinham de longo aprendizado nos bordéis de toda a região de minérios, cheia de homens e escassa em mulheres ditas honestas, e de feroz competição entre as raparigas. Todas tiveram que aposentar-se cedo, com recursos para não morrer de fome. Todas, menos Elielza, mulher de Nhozinho, o benzedor  da casa do lado direito que, sob o pretexto de que o  marido, de tão santo, endoidara, entrara para a comunidade.
             Eram, naquele tempo muito mais do que seriam hoje, mulheres velhas, mas tinham o rosto sereno, de pessoas que sempre haviam feito o bem (ou não?), e que guardavam na memória os vocábulos de afeto, com a altura de contralto,  na cálida temperatura das frases. Delas era um bordel sem camas.
              Os clientes estavam avisados de que deveriam sair antes da hora da janta, servida sempre às sete e meia, pela Nisete, empregada muito feia, escolhida pela astúcia de Lina. Depois do que, ouviam o rádio e, nas épocas certas, rezavam as novenas e iam para a cama.
              Eram três – Lina, Geni e Guida – e com Elielza foram quatro. Mas Elielza durou pouco ali. Quando Nhozinho morreu (vingança de cobra, exercida por  astuta e idosa cascavel), o filho veio de São Paulo e ela retornou à casa do lado direito, só visitando o outro lado quando ele viajava, porque gostava de ali estar, acariciando homens estranhos, que não eram santos, nem doidos.
              “Pra mim é melhor do que falar com padre, e mais barato do que ir ao médico”, explicava o advogado Mascarenhas, que vinha de longe vê-las uma vez por semana.
              Elas ouviam os homens, quase todos jovens, consolavam-nos com os exemplos da vida, acolhiam-nos em seu regaço com carinho, cantavam aos seus ouvidos canções muito antigas, algumas de ninar.  Não permitiam liberdades maiores: delas estavam aposentadas. Tampouco falavam em pagamento; para a frugalidade dos gastos cotidianos, o que tinham bastava. Mas, como os curandeiros e assemelhados, não recusavam oferendas, fosse em mantimentos, fosse em dinheiro.
               Tenho pensado muito na Casa do Lado Esquerdo. Hoje,  se houvesse uma casa assim, não haveria freqüentadores. Os homens retribuíam com afeto o afeto que recebiam; elas e eles escapavam, naqueles momentos de límpida ternura, da sua própria  solidão.